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3 de Março de 2009

Avelino de Jesus

A reunião, de 1 de Março último, de chefes de Estado e de Governo da U.E., destinada a discutir a actual crise económica e financeira, teve como pano de fundo o espectro do proteccionismo. Este, instalado já em todo o mundo e em rápida expansão, tem contado com a colaboração empenhada da Comissão Europeia, célere na tomada de medidas contra países terceiros. Agora o demónio entra-lhe pela porta adentro, com vários países a ameaçarem o próprio mercado único europeu. A linguagem de madeira do comunicado oficial da reunião não engana. Os apelos prementes dos parceiros de leste, em grandes dificuldades, não tiveram menos que isto: “Salientar que o proteccionismo não é resposta para a actual crise e manifestar confiança no papel da Comissão enquanto guardiã do Tratado”.

A política keynesiana de estímulos, pela sua própria natureza, arrastará os governos para uma corrida a medidas de protecção das empresas nacionais. Face a países terceiros, a U. E., entre outras medidas recentes, reintroduziu os subsídios à exportação de lacticínios e impôs uma tarifa de 66% às importações de velas chinesas. Na Alemanha, os investidores estrangeiros terão que obter autorização do governo federal para adquirir mais de 25% das acções de uma empresa. A França reforçou a sua histeria proteccionista e prepara-se para excluir as empresas e o emprego não francês no processo de ajudas estatais à indústria automóvel. A índia e a Rússia reforçaram fortemente as tarifas às importações de aço e de automóveis. Os EUA avançam com a provisão “Buy American” no programa de estímulo.

Aquelas iniciativas são de grande significado e anunciam o que aí vem as seguir. Para além da intrusiva influência do Estado, do reforço dos cartéis – sindicatos e outros organismos corporativos – da diminuição, em geral, da concorrência interna, um dos aspectos mais penalizadores, para Portugal, do novo panorama económico, vai se o proteccionismo interno e externo à U.E. Na verdade, os países de mercado de média e pequena dimensão serão os maiores perdedores
O proteccionismo, faz parte, desde a sua origem, dos corolários da teoria keynesiana. Em muitos aspectos, poder-se-á mesmo sustentar que as pulsões proteccionistas precederam e criaram – a par com o desprezo pelas preocupações com a poupança e com o futuro da novas gerações – as motivações necessárias para a elaboração do edifício teórico do keynesianismo. Existem pelo menos três textos1 de Keynes, anteriores à Teoria Geral, que anunciam a concepção geral da sociedade que o autor visiona.

A política de estímulos de concepção keynesiana, com acentuação nos incentivos ao consumo, à despesa pública à concessão de créditos especiais arrastará as medidas de protecção das empresas e dos mercados nacionais dos estados que as emitem. Os governos não vão tolerar que as suas despesas benificiem as empresas dos vizinhos. O enquadramento conceptual oferecido pelo keynesianismo apela ao egoísmo individual e a privilegia os objectivos imediatos e de curto prazo com desprezo pelo futuro e pelas necessidades de coesão e de integração europeia.

É bem conhecida a célebre frase de Keynes: “As ideias dos economistas e filósofos políticos, estando certos ou errados, são mais poderosas do que é geralmente admitido. Na verdade, o mundo é governado por pouco mais. Os práticos, acreditando estar isentos de influencias intelectuais, são em geral escravos de algum economista defunto”. Esta sentença colocada na conclusão da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, apesar de abundantemente citada, é muito mal compreendida quando se trata de formular e analisar a política económica da actualidade.

No entanto, precisamos, para entender as origens da actual crise económica e financeira e antecipar algumas das suas consequências que estão para vir, valorizar devidamente dois factos:

Primeiro, os economistas, os políticos, os fazedores de opinião, são hoje e desde a década de 60 do século XX, dominantemente escravos do defunto Keynes. Por esta via, o keynesianismo impôs-se como a teoria social do nosso tempo.

Segundo, o keynesianismo é um sistema de pensamento assaz completo, articulado e coerente que ultrapassa a economia, impondo-se na área da moral e dos comportamentos sociais em geral. Muitas das consequências mais chocantes do sistema keynesinano foram claramente explicitadas pelo próprio fundador em passagens terrivelmente claras – como a título de exemplo nomeio nos textos já referidos – da sua prolixa obra. Os textos mencionados – que por serem breves e explícitos na concepção de sociedade defendida – são boas introduções ao pensamento keynesiano: Eles vão ao âmago dos problemas que defrontamos: por um lado, a deriva proteccionista e, por outro lado, o desprezo pela poupança, pelas novas gerações e, em geral, pelo futuro.

A expressão “A longo prazo estamos todos mortos” atribuída a Keynes e frequentemente glosada por muitos numa acepção favorável e positiva é, na verdade, significativa e desprezível, na medida em que acentua o privilégio do imediato e do consumo.

A influência de Keynes não está na qualidade da sua teoria económica – aliás medíocre – mas da relevância do seu sistema de pensamento global, de contestação aos valores conservadores e cristãos, que nos últimos 50 anos foi ganhando importância crescente. Mesmo nas matérias aparentemente económicas isto está presente. A sua fixação no combate à poupança – fonte de todos os males – deriva de um sistema global de valores alternativo e não de demonstração cientifica, sentenciando expressamente: “A moral, a política, a literatura, e a religião confluíram numa grande conspiração para promover a poupança”.

Esta posição é fundamenta na rejeição dum propósito, de uma finalidade para a vida, para além do imediato e da fruição imediata dos bens e dos prazeres. A recusa da família tradicional, instituição que, por excelência, transporta os recursos do presente para o futuro, o repúdio do propósito de viver para os outros, são outros dos pilares da sua visão para a sociedade.

Este modo keynesiano de ver a sociedade, porventura menos conhecido e menos evidente nas suas obras “económicas” é muito claro e expressivo em muitos outros escritos. Assim, explicitamente, classifica a preocupação com o futuro de “mórbida”, de “semi – criminosa”, e de “semi – patológica”, avançando até que deve ser tratada como “doença mental”.

Nesse sentido, não é de admirar que, sendo o juro o elo que, na vida económica, liga o presente ao futuro, preconize a sua eliminação.

Quase todos, economista, políticos, eleitores seguiram Keynes: fomentaram o consumo, orçamentos públicos gigantescos, deficits e dívidas públicas e privadas incontroláveis, numa vã ânsia de eliminar o futuro, o juro, a idade, as rugas, enfim, o tempo. As novas virtudes parecem ser agora o consumo, a extravagância, a imprevidência e os grandes vícios seriam a poupança e a prudência.

A grande crise de 1929 foi o memento histórico que permitiu ancorar o ensino e expansão da doutrina keynesiana. A grande crise de 2009 é a ocasião que, não obstante a consagração pouco disputada daquela doutrina, permitirá evidenciar que os velhos vícios da imprudência, do excesso de consumo, do desprezo pelo futuro não deixaram de o ser pelo toque de magia de uma teoria económica errónea e moralmente nociva.

A natureza da resposta dominante à crise económica e financeira, um ingénuo mas duro keynesianismo – com e emissão de doses monumentais de despesas públicas e de facilidades de crédito – determina que um dos seus corolários seja o proteccionismo. Este ressurge por todo o lado com crescente virulência. Não poderia ser de outra forma, dada a natureza dos mecanismos económicos que aquela resposta põe em marcha. Por outro lado, só o desconhecimento da história da formação do pensamento keynesiano justifica que muitos, aceitando a natureza dos estímulos em curso, estranhem esta deriva proteccionista.

* Director do ISG – Instituto Superior de Gestão majesus@isg.pt

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1 Para as questões tratadas neste artigo – o proteccionismo e o desprezo pela poupança e pelo futuro – são significativas as seguintes referências:

– “National self-sufficiency”, de 1933, The Yale Review, Summer 1933;

– “Possibilities For Our Grandchildren”, de 1930, Essays in Persuasion, New York: W.W.Norton & Co., 1963;

The End of Laissez-Faire, de 1926, Hogarth Press, 1926.

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