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JN 25 de Maio de 2010

Avelino de Jesus

Os recentes acontecimentos o âmbito da gestão no euro, culminando nas graves decisões do dia 10 de Maio, são muito preocupantes e, se forem desenvolvidos na mesma direcção, como há o risco de ocorrer, inviabilizam, por longo período, a retoma do processo de convergência da economia portuguesa.

Haverá, assim, que ver muito claramente qual é o rumo que serve o interesse nacional e que se impõe defender.

Qual é o interesse de Portugal e em que sentido deverão os nossos poderes públicos trabalhar? É do interesse nacional:

  1. Uma política monetária rigorosa que assegure a estabilidade monetária, com o reforço – e não o relaxamento em curso – da independência do BCE e a atribuição a este de novas funções de supervisão dos sistemas financeiros nacionais;
  2. A separação entre a política de finanças públicas e a política monetária, com o reforço – e não a diminuição que se prepara – da autonomia dos Estados nacionais deixando que cada um assuma as suas responsabilidades e suporte os custos das suas políticas, incluindo a assumpção da falência e as consequente reestruturação da dívida pública;
  3. A retoma do processo de construção do mercado único europeu com um novo fôlego do processo de liberalização do movimento de bens serviços e factores de produção, com especial ênfase nos sectores dos serviços, trabalho e sector financeiro;
  4. Reafirmação e reforço da autonomia dos Estados nacionais nas restantes áreas de política económica nomeadamente naquelas com especial relevância para a retoma da convergência portuguesa onde é decisivo prosseguir políticas próprias que a incentivem.

Os acontecimentos recentes alteraram radicalmente a natureza do euro. Os investidores não confiam nas promessas e velam, sem tréguas, pela segurança e rentabilidade do seu dinheiro, enfrentado a incerteza com a crescente aversão ao risco que a crise internacional despoletou. As decisões dos órgãos comunitários de 10 de Maio – em consonância com a tendência dos últimos anos, já antes da crise – em vez de estabilizar, vieram agravar a aversão ao risco dos investidores agravando as dificuldades portuguesas.

Para alguns a situação portuguesa vem confirmar o erro da adesão ao euro: as actuais dificuldades e o miserável acrescimento dos últimos 10 anos estariam ai para o confirmar; só não propõem abertamente a saída por pudor e falta de atrevimento em conceber um processo de saída não catastrófico.

Para outros – posição dominante e verdadeiramente perigosa – as últimas modificações confirmam o acerto da pertença e vêem nelas a possibilidade de beneficiar de um novo ciclo de ajudas e privilégios da Europa em substituição dos anteriores massivos fluxos de ajudas iniciadas desde meados dos anos 80 do século XX. Nesse sentido saúdam as últimas notícias – que lhes parecem anunciar novas dádivas, agora sob a forma de fundos monetários europeus, emissões centralizadas e monetarização da dívida pública, etc. – mesmo se elas configuram uma inaceitável perca de autonomia nacional.

Nem uns nem outros me parecem estar certos.

O país beneficiou, desde 1999, de período de excepcional fraca aversão ao risco nos mercados financeiros. A crise de 2008 veio repor as coisas na situação normal. As erradas políticas económicas seguidas deixaram de se protegidas pelo euro. Os mercados levaram tempo a reagir ao erro, mas a crise o acelerou o processo e não haverá retorno à situação anterior.

O euro – e sobretudo na sua fase inicial – representou um avanço notável, criando a estabilidade monetária necessária para promover o crescimento e deu aos decisores de política económica um margem infelizmente desperdiçada. A perca de autonomia monetária foi um avanço e não se lhe pode ser assacada a responsabilidade pela divergência da economia portuguesa.

O relaxamento das regras tradicionais de funcionamento do euro e a centralização na “Europa” de áreas de decisão até agora reservadas aos países significa que poderão estar irremediavelmente comprometidas as possibilidade de reiniciar um processo de convergência, catapultando o país para uma situação de facto e formalmente subalterna e de assistido crónico.

Para entender o que está em causa convém sintetizar a forma como o euro evoluiu, evidenciando ao principais aspectos positivos e negativos.

O BCE foi na fase inicial protegido da interferência política. Os estatutos dos bancos centrais, que compõem o Eurosistema, deram-lhes assinalável independência dos governos. A não existência de um governo supranacional como contraparte do BCE reforçou a sua independência. No ano do arranque do euro, 11 dos governos fundadores, 7 eram socialistas e só um dos 6 membros do conselho executivo – o seu presidente – presidente era socialista (mas mesmo assim conservador em política monetária). Os efeitos económicos positivos desta ortodoxia foram efectivos, sendo de destacar a redução significativa da inflação nos países periféricos como Portugal e a entrada do euro no círculo das moedas de reserva internacional, onde rapidamente ganhou a segunda posição a seguir ao dólar.

As actuais dificuldades inserem-se num processo de degradação do funcionamento do euro cujas sementes, porém, se revelaram muito cedo.

Desde logo, a criação do euro começou com a infracção dos critérios de convergência. Alemanha Áustria, Itália e Espanha, violaram o critério do deficit. Itália, Finlândia, Irlanda e Portugal não cumpriram o critério da taxa de câmbio. A Holanda e Bélgica violaram o critério da dívida. Dos 11 membros iniciais só um , o Luxemburgo, cumpriu. Depois, em 2001 a Grécia foi admitida quando todos conheciam as condições em que os seus dados de convergência foram elaborados.

Apesar do efeito positivo sobre a inflação para países periféricos como Portugal, os resultados globais não são positivos. Entre 2001 e 2008 a inflação na zona euro foi de 2,3% de média anual composta, portanto superior aos 2% do objectivo definido. Países comparáveis fora da zona euro – como a Dinamarca, Noruega, Reino Unido, Suécia e Suíça – registaram taxas inferiores: respectivamente, 2,1%, 1,9%, 1,9%, 1,8% e 1,0 %. Estes resultados não ocorreram por acaso; em Maio de 2003 o BCE mudou o objectivo de inflação: deixou de estar na faixa entre 0 a 2%, visando de facto 1,5%, para se fixar em 1,99%.

Em Março de 2005 – depois de, entre 2002 e 2004, vários países, entre os quais a Alemanha e a França, terem violado o critério do deficit público – o PEC foi enterrado de facto. Deve recordar-se aqui a humilhação infringida a Portugal em 2002 num processo de acusação – que depois se verificou ser escusado – por ser o primeiro infractor do limite do deficit público.

Em 2006 o economista chefe e membro do Conselho Executivo do BCE desde 1998, Otmar Issing, alemão, conservador, teorizador e guardião do rigor monetário foi substituído por Loukas Papademos, grego, socialista e defensor da ideia de que a inflação não é um fenómeno monetário.

Depois da crise internacional de 2008 esta tendência manteve-se e foi mesmo reforçada.. O aumento da incerteza e da aversão ao risco dos investidores nos dois últimos anos precipitaram a deriva para as sucessivas facilidades, negadas sempre veementemente na semana anterior: primeiro a “ajuda” à Grécia, depois a revogação da regra de notação mínima na aceitação das obrigações de dívida pública para garantia de facilidades de liquidez, culminando no fatídico 10 de Maio com as decisões de constituição de um fundo de ajuda de 750 biliões de euros para acudir aos governos em dificuldades e de monetarização das dívida públicas dos membros do euro.

O reforço desse tipo de integração dificultará a convergência real e acentuará as tendências para a desigualdade entre as regiões da Europa.

Uma solução que resulte num novo ciclo de “ajudas” a Portugal, no âmbito de reforço das políticas comuns, não é aceitável. Os vultuosos fundos comunitários, que irrigaram muitos interesses particulares, foram uma verdadeira tragédia para a economia portuguesa, provocando descomunais distorções no investimento, contribuindo para a redução da poupança nacional e para a constituição de grupos de interesses que se instalaram e parasitam a economia nacional. A causa não esteve só mau jeito na aplicação dos fundos. As próprias políticas não nos são adaptadas e são perversas para a convergência portuguesa.

O euro sofreu nas últimas semanas uma transformação que põe em risco a sua própria existência. Mesmo que não soçobre(1) – e esta hipótese será muto dolorosa para Portugal – as condições de existência estão em discussão e iremos viver um período de redefinição. Impõe-se que – o invés de nos aturdirmos com a vertigem dos acontecimentos – discutamos seriamente quais os interesses que nos são próprios e que urge defender nas instâncias comunitárias.

Director do ISG – Instituto Superior de Gestão

majesus@isg.pt

(1) Esta não é hipótese meramente académica. No fim de 2009, o BCE surpreendeu ao publicar o seguinte estudo: Phoebus Athanassiou, Withdrawal and Expulsion from the EU and EMU: Some Reflections, BCE, Legal Working Paper Series, Nº 10 / Dezembro de 2009 (http://www.ecb.int/pub/pdf/scplps/ecblwp10.pdf).

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