
“Navigare necesse, vivere non est necesse”
A célebre frase “navigare necesse, vivere non est necesse”, que muitas vezes é atribuída a Fernando Pessoa, é na verdade uma expressão originária do general romano Pompeu Magno. Isto leva-nos a olhar para a história em que Pompeu perante uma tempestade em alto mar decide arriscar e ordenar aos seus marinheiros que seguissem em frente mesmo com esta intempérie.
O povo romano estava assolado pela fome e era necessário levar trigo a Roma. Pompeu não hesitou e concluiu com êxito a missão a que se propôs. O seu ato de coragem trouxe-lhe conquistas notáveis, culminando na sua nomeação para governar em conjunto Roma com Crasso e Júlio César.
A expressão tornou-se uma metáfora para a vida real e que nos deve deixar a pensar. Ou seja, navegar na incerteza e arriscar é necessário para que consigamos alcançar o sucesso e ser verdadeiramente livres, quando vivemos apenas estamos a consignados ao tribalismo do ser, o ato mais cómodo e redutor que o ser humano pode ter. Viver apenas não chega. É preciso arriscar, é preciso ir além do simples estado de ser. Como tal, para se ousar “navegar” é preciso ser-se livre. E sê-lo na verdadeira conceção da palavra é também, por si só, um ato de coragem.
Recentemente, celebrámos duas efemérides: o 25 de Abril, Dia da Liberdade e o 3 de Maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Estas datas vêm reforçar a importância da liberdade como fundamento indispensável de uma sociedade democrática e pluralista. Contudo, mesmo reconhecida e consagrada nas leis, a liberdade pode, por vezes, entrar em conflito com outros princípios, especialmente quando mal interpretada ou manipulada, podendo comprometer a própria sobrevivência da democracia e consignar uma sociedade ao simples ato de viver.
A liberdade deriva do conceito latim “libertas”, que significa “condição de ser livre” deve ser entendida no seu sentido mais abrangente. Liberdade em grego, “eleutheria” remete-nos para a liberdade de movimento, ou seja, a ausência de limitações físicas. Mas a liberdade pode ser individual, de pensamento, de religião, de expressão, de orientação sexual, de escolha de vida. Está presente nas múltiplas dimensões da nossa existência, embora nem sempre nos apercebemos da sua centralidade enquanto direito inalienável e indelével da nossa existência.
No entanto, a convivência em sociedade e a inserção num determinado Estado — com maior ou menor intervenção política — podem colidir com as liberdades individuais. Vivemos tempos desafiantes, onde estas tensões são cada vez mais visíveis. Exemplo disso, são os relatos sobre a administração norte-americana de Donald Trump, mencionados pelo The New York Times, que dão conta de tentativas de controlo da cobertura mediática da Casa Branca, nomeadamente pela exclusão de jornalistas independentes e o favorecimento daqueles que estão alinhados com a linha ideológica da administração Trump. Esta prática levanta sérias preocupações sobre o acesso à informação e à imparcialidade da imprensa, pilares fundamentais de qualquer democracia.
Acresce, ainda, a criação de uma nova categoria — os “novos media” — com acesso exclusivo a representantes de redes sociais como o X (antigo Twitter), agora sob controlo do Conselheiro Elon Musk. Uma nova cadeira, que cada vez mais, coloca o mundo a navegar numa verdadeira incerteza onde a liberdade de imprensa e de informação podem estar em causa. Ousamos nós ficar quietos e apenas a viver enquanto assistimos a isto?
É oportuno recordar o Artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa, os quais garantem o direito de todos à liberdade de expressão, incluindo o direito de informar e ser informado, sem impedimentos ou discriminações.
A liberdade de expressão e de informação representam, a meu ver, uma das conquistas mais tangíveis do nosso tempo. Quem nunca viveu sob censura pode ter dificuldade em compreender a sua verdadeira importância. A liberdade não é apenas um direito — é um motor de progresso social. É a liberdade que, tal como Pompeu, nos permite navegar além mar e desbravar novos conhecimentos.
Sociedades livres e bem informadas são sociedades mais desenvolvidas. A liberdade de imprensa permite um escrutínio eficaz do poder e assegura um Estado verdadeiramente democrático. A sua ausência representa uma ameaça direta à democracia.
Só através de um sistema democrático, livre e sustentado por uma educação de qualidade poderemos alcançar o progresso e resistir ao conformismo de apenas viver. A liberdade de expressão leva-nos até à reflexão crítica, à multiplicidade de opiniões, o direito ao dissenso e, acima de tudo, a intervenção cívica. Essa intervenção, por sua vez, contribui para políticas públicas mais justas e para legislações mais alinhadas com os interesses dos cidadãos.
Como afirma Amartya Sen (2010, p. 201): “Nenhuma fome coletiva substancial jamais ocorreu em nenhum país independente com uma forma democrática de governo e uma imprensa relativamente livre”
Não poderia deixar de assinalar estas efemérides sem destacar valores que, muitas vezes, tomamos como garantidos, mas que, na verdade exigem permanente vigilância e defesa. A qualquer momento, o mundo, o nosso país — nós próprios — podemos deixar de ser livres. Podemos deixar de navegar e passarmos a viver.
Para mim, ser livre é a razão da nossa existência e é um dos Direitos mais difíceis de cumprir, pois, existem ainda muitos “mas” que socialmente nos permitem contornar as liberdades tidas como fundamentais. Sociedades mais informadas são sociedades mais livres, mais justas, mais igualitárias e mais atentas à desinformação. São também sociedades mais ousadas em navegar nesta maré de incerteza que é cada vez mais o nosso mundo.
Mas não se esqueçam: “Navegar é preciso, viver não é preciso”.
Dra. Teresa Damásio, Administradora do Grupo Ensinus para a Link to Leaders