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Direitos Fundamentais: Com ou sem hierarquia?

15 de Novembro, 2022

Preceitua o art.º 9º da Constituição da República Portuguesa (CRP) as diversas tarefas que se deverão considerar como fundamentais pelo Estado Português, destacando-se desde logo duas que se encontrarão estatuídas posteriormente numa das Partes da estrutura formal deste diploma legislativo supremo, designadamente a garantia dos direitos e liberdades fundamentais (alínea b. do art.º 9º CRP) bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais (alínea d. do art.º 9 CRP). Estes dois núcleos de direitos, considerados como fundamentais, são, na nossa opinião, o pressuposto essencial de um Estado de Direito Democrático que se queira consignar como mecanismo de representação dos seus destinatários, ou seja, do seu Povo, no âmbito da soberania popular (art.º 2º da CRP) que a este pertence, e em deferência do princípio da Dignidade da Pessoa Humana o qual deverá primacialmente observar e propagar, já que existem direitos que são inatos a qualquer Ser Humano.

Assim, os pilares de uma Lei Fundamental e, consequentemente, da sua Organização do Poder Político, deverão ser precisamente os direitos denominados como fundamentais e que são necessariamente a essência de certa área geopolítica e correspondentes cidadãos visto que os mesmos não sucederão sem a existência de Estado, que possibilita um sistema livre, justo e solidário (art.º 2º da CRP) nem de uma Constituição que os declare e que, portanto, salvaguarde o seu respeito, proteção e promoção, numa esfera própria de autonomia das pessoas frente ao poder, num enquadramento deste perante a coletividade e não o contrário (numa absorção da comunidade pelo Estado).  

Não é por isto arbitrária a Parte I do nosso diploma constitucional ser dedicada aos direitos fundamentais porquanto se deverem posicionar como propósito preeminente da nossa sociedade e concernente instituição política integrada, que terá a obrigatoriedade, através das restantes disposições constitucionais e legislativas, de conceber outros princípios, regras e procedimentos, que atuarão como instrumentos para que estes objetivos, em proliferação do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, possam verdadeiramente ser alcançados. Ou seja, os direitos fundamentais (ou, dito de outra forma, os direitos humanos no âmbito internacional) deverão ser sempre a prevalência de uma Sociedade politicamente organizada, que se queira considerar como respeitadora do estatuto da pessoa humana e da sua dignidade sagrada dado que, como nos explica Jorge Miranda, o Ser Humano ser o “fundamento e fim da sociedade e do Estado”. Todavia e independentemente da sua capital dimensão e indissociabilidade, verifica-se constitucionalmente uma diferenciação entre aqueles direitos que se consideram como liberdades e garantias, em contraposição com os económicos, sociais e culturais e inclusivamente uma hierarquia entre ambos, atribuindo a Lei fundamental uma supremacia aos primeiros, usufrutuários de um regime especial (veja-se desde logo os artsº 17º, 18º e 19 da CRP).

Não é intenção neste artigo jurídico proceder à polémica discussão entre estas duas categorias, a qual remetemos para outros trabalhos da nossa autoria, mas sim transmitir os principais critérios de distinção entre ambos, alvo de intenso debate na doutrina, de modo a que o próprio leitor consiga meditar sobre esta tema prioritário e que a todos afeta diretamente, uma vez que serão as nossas decisões sociais e políticas que serão responsáveis pela possível maior ou menor oferta destes mesmos direitos e até, mais especificadamente, dos direitos sociais, no contexto do denominado Estado Social.

Na esfera da argumentação ideológica entendemos existirem em suma, três pensamentos doutrinais, nomeadamente e prontamente aqueles que entendem verificar-se uma clara separação e classificação entre direitos, liberdades e garantias versus direitos económicos, sociais e culturais, com evidente privilégio para os primeiros, até pela organização constitucional que os favorece, numa “menoridade axiológica dos direitos sociais” (André Salgado de Matos), considerando ademais vários doutrinadores que os segundos nem sequer são direitos fundamentais, mas somente imposições dirigidas ao legislador ou meras normas-tarefa. Verifica-se, pois, para estes autores, como é opinião de José Melo Alexandrino, “uma distinção marcante”, aliás, “bem visível na sistematização dada à Parte I da CRP”.

Num outro raciocínio, os que continuam a concordar com uma diferenciação entre liberdades e garantias e direitos sociais, numa ótica de primado dos preambulares, mas agora com a necessidade da realização de um mínimo social ou existencial e em harmonia com os princípios da dignidade da Pessoa Humana, proporcionalidade e da razoabilidade, algo que se parece até com maior exatidão e de acordo o nosso entendimento, poder extrair-se do texto da CRP já que, estando expostos na lei proeminente enquanto direitos fundamentais, qualquer um dos direitos sociais deverá ser observado mesmo que em grau distinto das liberdades e garantias.

Por fim, aqueles que proclamam, fruto da evolução histórica e social das coletividades, a urgência de uma real equiparação, numa lógica de “atribuição aos direitos sociais de uma relevância plena enquanto direitos fundamentais”, como nos preceitua Jorge Reis Novais, no âmbito de uma dogmática unitária, ou seja, a inexistência de uma gradação em decorrência da eventual submissão aos mesmos quesitos. Nestes termos, os requisitos de comparação são essencialmente quatro e, prontamente a classificação das liberdades e garantias como direitos negativos enquanto, “a contrario”, os direitos sociais como direitos positivos.

Assim, como nos elucida Jorge Miranda, os primeiros são “direitos de libertação do poder e, simultaneamente, direitos à proteção do poder contra outros poderes”, portanto, consoante José Melo Alexandrino, “direitos que resguardam a pessoa contra intervenções ou ingerências do Estado”. Isto é, são direitos de defesa, que nos protegem de maneira universal, garantindo-nos liberdade contra tudo e todos, desde logo “assegurando a suficiente distância entre a pessoa e o Estado”, como nos completa José Melo Alexandrino.

Cada um tem e deve ter a autonomia de decidir livremente sobre a sua vida e interesses e não ser coartado em sentido adverso, inclusive e até principalmente, como nos menciona Jorge Miranda, pela penetração do Estado na sua personalidade e afetação do seu Ser. Já os direitos sociais, segundo este pensador, são “direitos de libertação da necessidade e, ao mesmo tempo, direitos de promoção”, conectados com o bem-estar social, isto é, implicam a prestação de bens e serviços, “visando corrigir as desigualdades de partida”, como nos refere José Melo Alexandrino, num contexto de igualdade de oportunidades.

Deste modo, nos primeiros, o Estado não deve desenvolver qualquer conduta relativamente ao cidadão, retirando-lhe alguma liberdade (como exemplos, não poderá estabelecer a pena de morte ou proibir qualquer impedimento deste exprimir as suas ideias, inclusivamente contra o próprio poder instituído), dispondo o referido individuo de garantias que o protejam e assim, de um “direito de agir” (Jorge Miranda).  Já nos segundos, o Estado é obrigado a oferecer os bens e serviços que satisfaçam estes direitos e até a apoiar financeiramente os setores social e privado, com os quais deverá colaborar, podendo ser exigido que tal suceda pelos destinatários da norma, ou seja, por nós, num “direito de exigir” (Jorge Miranda).

Nesta sequência, os direitos, liberdades e garantias são universais, aplicáveis por conseguinte a todas as pessoas, sem qualquer caráter distintivo visto que ninguém tem, por verbi gratia, mais direito ou menos direito à vida ou mais ou menos direito de votar. Relativamente aos direitos sociais, serão não universais, por entender-se que se deverão exercer em benefício dos mais desprotegidos, por forma a que possam usufruir das condições mínimas adequadas a uma certa qualidade de vida, numa conjuntura de solidariedade, não sendo por isso extensíveis a todas as pessoas, mas apenas a algumas que deles dependam. Isto mesmo nos preconiza Jorge Vieira de Andrade, que entende serem direitos específicos de alguns, daqueles que deles precisam, “na medida da sua necessidade”.

Alega ainda o renomado autor alemão Robert Alexy, que “são direitos do individuo frente ao Estado a alguma coisa que aquele poderia obter também de privados se possuísse suficientes disponibilidades financeiras e se encontrasse no mercado oferta suficiente”, posições, diga-se, que não concordamos (exemplificativamente, qualquer criança poderá frequentar a escola pública, não apenas as de extratos sociais inferiores, ou qualquer individuo poderá aceder a um hospital público e não somente os mais pobres, sendo que as infraestruturas para a prática do direito fundamental ao desporto não comportam qualquer limitação relativa à capacidade financeira). Quanto muito, poder-se-á invocar, argumento o qual aprovamos, que o principal objetivo será possibilitar um “mínimo de existência” ou de bem-estar, que propicie uma vida digna, e que obviamente terá como maior preocupação os mais carenciados, mas não a sua não universalidade em virtude de existirem diversos direitos sociais de imediato disponíveis a todos, sendo que aqueles que não estão, poderão estar a qualquer momento face às vicissitudes da vida, importando sim, proporcionar uma rede de proteção que se encontrará em vigor, mas à generalidade dos Seres Humanos, conforme nos confirma inclusivamente o art.º 12º da CRP, até porque não estamos em todos os momentos a fruir da integralidade dos direitos fundamentais, mesmo daqueles que se classificam como liberdades e garantias.

A terceira antítese diz respeito à determinabilidade ou indeterminabilidade da norma constitucional, necessitando as liberdades e garantias, para completa salvaguarda, de se encontrarem previstas de forma claramente determinada, de modo a serem evitadas interpretações por parte do poder público, que viabilizariam a violação da proteção e do dever de respeito concedidos. É exemplo a proibição da pena de morte em Portugal, cujo conteúdo não levanta quaisquer dúvidas e vincula de modo preciso e inequívoco o legislador ordinário, que não dispõe de margem de discricionariedade. Já nos direitos sociais o teor normativo será indeterminável, proporcionando a Lei Fundamental, como nos explana Jorge Miranda, “uma mais vincada densidade constitucional” às liberdades e garantias.

Os direitos sociais, na esfera desta divisão, serão normas programáticas, que precisarão de propiciar “a suficiente abertura a diferentes manifestações de vontade popular através do voto” (Jorge Miranda), isto é, deverá ser a população a decidir a dimensão do Estado Social pretendido o que intercorrerá momentaneamente com a escolha dos órgãos de representação política bem como com o uso de outros mecanismos juridicamente providenciados, encontrando-se destarte alicerçados em razões sociais e políticas e portanto, na nossa vontade enquanto sociedade. Na prática e na visão de José Gomes Canotilho, “os direitos sociais só existem quando as leis e as políticas sociais os garantirem”, em função de ser “o legislador ordinário que cria e determina o conteúdo”. Se assim não fosse, entendemos que a nossa própria liberdade, originariamente facultada pelas liberdades e garantias, ficaria ulteriormente condicionada em pleno à Constituição o que quebrantaria a nossa legítima vontade, desde logo porque o financiamento dimana precisamente das pessoas que pertencem a esta comunidade.

É por tais motivos, de inescusável autonomia popular, que o Estado Social diverge genuinamente nos múltiplos territórios, não sendo idêntico em Portugal e nos EUA ou na Europa do Norte. Será ainda relevante, como dilucida Jorge Reis Novais, “a natureza deste tipo de direitos e a sua dependência de fatores mutáveis com a alteração de circunstâncias que o Estado não controla ou pode deixar de controlar”, como aliás foi exemplo o período de pandemia e é novamente presentemente a crise face à guerra na Ucrânia. Todavia e visto os direitos económicos, sociais e culturais serem direitos fundamentais, que impelem a uma intervenção do Poder Público, deverão ser inevitavelmente concedidos em certa proporção e nos termos assinalados, no tal mínimo necessário de existência, e caso assim não ocorra parece-nos sobrevir uma transgressão constitucional e uma inadimplência do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pois a falta de acesso de todos em igualdade de oportunidades às condições basilares de uma coletividade é limitativa da sua própria liberdade. 

Em conclusão, não deverá ficar ao critério de cada época, população ou Estado a decisão de certos direitos primaciais, como a vida ou a liberdade circunscrita (a título de exemplo, a moldura penal ser alterada para pena de morte ou prisão perpétua, ou ainda, limitar-se a liberdade de votar), mas já será conveniente que a cada momento, segundo os cenários social, político e/ou económico, se possa ir adotando os direitos sociais que se forem demonstrando mais congruentes, sempre no entanto com a subsistência de um elenco proporcional e de antemão, alicerçados na reserva do financeiramente possível e no âmbito do princípio da capacidade contributiva.

Desta feita, nunca poderão faltar verbas para resguardar os múltiplos direitos, liberdades e garantias, essenciais num Estado de Direito Democrático, ficando os direitos económicos, sociais e culturais dependentes, quer do vigor orçamental do Estado face, como lhe chama Rawls,  à objetiva “escassez moderada de recursos”, resultante das contribuições cometidas pelos contribuintes no domínio do pagamento de tributos incorporado pelo Estado Fiscal, quer desta mesma motivação no âmbito das conceções admitidas pela maioria da camada populacional.

Gomes Canotilho disserta mesmo que “os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos” e “conferir-lhes um conteúdo muito preciso significaria, inevitavelmente, a impossibilidade de o Estado, obrigado posteriormente ao cumprimento estrito das imposições constitucionais, ser capaz de reagir rápida e adequadamente à modificação das condições” (Jorge Reis Novais). Assim, por muitas boas intenções de que se possa usufruir, será sempre imperioso ponderar as escolhas de distribuição dos direitos fundamentais, sendo estes os parâmetros dogmáticos que nos orientam na nossa deliberação enquanto comunidade soberana popular e em forçosa cogitação com o disposto na Lei Suprema Portuguesa e no apreço pelos opíparos Princípios Fundamentais (exempli gratia, da dignidade da Pessoa Humana, da Separação e Interdependência de Poderes ou da proporcionalidade e razoabilidade).

Prof. Mestre Miguel Furtado, Coordenador das áreas formativas jurídicas pós graduadas do ISG

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