21 Maio, 2019
Uma das matérias mais relevantes nos ramos de direito privado é a relação entre credor e devedor proveniente de uma obrigação realizada através de um acordo com incidência legal ou decorrente da própria lei, caso de um contrato na primeira situação e consequentemente da respectiva responsabilidade contratual ou da responsabilidade extracontratual no âmbito da segunda hipótese (por exemplo, a responsabilidade pelo risco relativa à posse de um cão de raça perigosa ou dos danos provocados pela realização de uma obra).
Assim, como consequência das relações desenvolvidas pelos seres humanos entre si, surgem normalmente como salvaguarda da coexistência necessária numa sociedade (lembremo-nos que este é o principal fundamento do Direito, conforme já desenvolvido num outro artigo – 11 de dezembro de 2017) responsabilidades pelos danos eventualmente provocados quer pelo não cumprimento de um contrato quer pela violação de uma conduta estatuida pelas normas legais que prejudique terceiros no decorrer normal desta coabitação social, de acordo com o princípio da Segurança Jurídica.
No artigo desta semana é nossa pretensão analisar a responsabilidade de cariz originariamente contratual provinda de dívidas provocadas por um devedor casado e perceber se o correspondente cônjuge é igualmente afetado através do seu património.
Não existem dúvidas de que quem provocou a dívida será obviamente responsabilizado através dos seus haveres e até à extinção da mesma, pois como nos explica o art. 601 do CC (e sem analisarmos aqui as responsabilidades relacionadas com as empresas, trabalho aliás já realizado igualmente em outras ocasiões), “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora”.
Deste modo, a ambição é verificar se o outro membro do casal, ou seja, o cônjuge do devedor, responde também com o seu património pelas importâncias provocadas por este ao seu credor e não pagas, prioritariamente a nível comercial.
Desde logo é fulcral estabelecer, em conformidade com o art. 1671º do CC, que os membros do casal têm direitos e deveres idênticos verificando-se portanto uma igualdade entre as partes. Tal não sucedia desta forma em épocas anteriores onde o homem era considerado jurídica e socialmente o cabeça de casal, com direitos prevalentes, encontrando-se consequentemente a mulher subjugada legalmente a este.
Esta possibilidade de igualdade (ou não) apresenta-se como essencial para estipulação de quem pode contrair dívidas. Como as partes são iguais nos seus direitos e deveres pertencendo a ambos a direção da sua família tendo em conta o seu bem mas igualmente e ao mesmo tempo, os interesses individuais de cada um, em conformidade com o disposto no art. 1671, nº 2 do CC, os dois membros têm liberdade para contrair dívidas sem o consentimento do outro, como poderemos concluir pelo nº 1 do art. 1690 do CC.
Desta forma, se um deles contrair uma obrigação sem o consentimento do outro membro, este também será responsabilizado ou “apenas” o devedor? Quando nos referimos a um comerciante nomeadamente um empresário em nome indívidual (ou identicamente a um proprietário de um EIRL que tenha praticado confusão patrimonial – ou dito de outra maneira, violado o princípio da Separação Patrimonial por ter usado indevidamente bens do estabelecimento para benefício particular) o mesmo necessita impreterivelmente, no desenvolvimento da sua atividade comercial, de realizar encargos sendo pois este facto inerente à própria vida corrente do comerciante (por exemplo, numa sapataria, de adquirir artigos ao seus fornecedores para posteriormente vender).
Destarte, é desde logo relevante perceber se a situação se enquadra em matéria regulada pelo direito comercial ou se o ramo a aplicar é o de direito cívil. Para que seja o primeiro devem suceder cumulativamente e de imediato dois pressupostos, de acordo com o preceituado no art. 15º do CCOM. A dívida realizada deve ser comercial e quem a contraiu ser comerciante.
Para o débito ser de cariz mercantil terá que encontrar-se relacionado com um ato de comércio objetivo ou subjetivo (remetemos a explicação desta matéria para o nosso artigo do dia 4 de Outubro de 2017) e dispor deste modo de uma correlação direta ou indireta com a atividade comercial.
Ser assim a própria atividade comercial (o tal exemplo supra referido da compra dos sapatos para revenda) ou ser alusiva a ela (a aquisição dos móveis para da sapataria – prateleiras, balcão, cadeiras para os clientes se sentarem e experimentarem os sapatos, etc). O devedor terá ainda que ser comerciante (remetemos a explicação deste tema para o nosso artigo do dia 15 de Novembro de 2018).
Não basta que se verifique apenas um dos requisitos já que poderá não possuir qualquer expressão para a propagação comercial. Veja-se o exemplo de um cidadão comum, que não seja comerciante. Se este quiser, poderá adquirir alguns produtos em promoção em algum estabelecimento e revender. Apesar da dívida ser mercantil, o sujeito praticou apenas um ato isolado para usufruir naquele momento de algumas mais valias não fazendo sentido aplicarem-se as normas de um ramo de direito específico, com determinadas finalidades. Para tal, bastava existir o direito regra (direto civil).
Diga-se ainda que um comerciante não limita a sua vida à atividade comercial que desenvolve, também pratica outros atos independentes do comércio e inclusivamente “do seu comércio”. Dessarte, se o tal empresário de sapatos adquire um pacote de férias para si e correspondente família, não faz igualmente sentido aplicar-se ao mesmo as disposições mercantis já que nos encontramos perante um mero ato civil.
A dívida deverá então ser comercial e praticada por um comerciante. Diga-se ainda que o credor é que deverá comprovar estes dois factos visto ser ele o interessado, nos termos do art. 342º do CC, cabendo-lhe por efeito o ónus da prova.
A acontecerem estas duas situações cumulativas, tudo indica com elevada probabilidade que a dívida comercial realizada pelo comerciante, foi contraída no exercício do seu comércio. Ora, devido a esta forte viabilidade e como o credor já teve a obrigatoriedade de demonstrar as duas primeiras, a lei “oferece-lhe” esta presunção mas cabendo ao devedor a possibilidade de a ilidir (arts. 349º e 350º do CC).
Imaginemos que o comerciante de sapataria adquira alguns chocolates para vender. Aqui, não ocorre o terceiro pressuposto conseguindo este ser ilidido. Contudo, a normalidade da maioria das dívidas realizadas é estarem relacionadas com o comércio do comerciante. Quando nos dedicamos a uma certa profissão, geralmente os atos que cometemos apresentam-se agregados a esta.
Nestes termos, para que o direito a regular seja o comercial, devem manifestar-se conjuntamente os três pressupostos plasmados no art. 15º do CCOM mas pela sequência indicada. Isto é, o credor tem que comprovar a dívida como comercial e o sujeito da mesma como comerciante.
Caso tal suceda, ocorre de imediato o terceiro pressuposto por entender-se que o referido débito foi contraído para o exercício do comércio deste comerciante, tendo o devedor a possibilidade de o ilidir. Se este não o conseguir, o direito aplicável é o comercial e a resposta de quem responderá encontrar-se-à no art. 1691º, nº 1, alínea d) do CC.
Mas se o credor não conseguir desde logo demonstrar as duas hipóteses iniciais ou, caso consiga, o devedor comerciante lograr ilidir a presunção respeitante à terceira condição, a situação já não será alvo do direito comercial pela não simultaneidade dos três quesitos aplicando-se desta forma o direito civil, nos termos do art. 1691º, nº 1, alínea c).
No âmbito da alínea referida (c)), para que ambos os cônjuges respondam com todos os seus bens e portanto, igualmente o cônjuge do devedor, deverá verificar-se proveito comum do casal ou seja, o resultado da dívida teve que beneficiar a outra parte que não a contraiu. Imaginemos que um dos membros adquiriu um sofá para a sala onde o casal reside. Ora, o cônjuge obviamente irá também poder usufruir deste e nestes termos, há a vantagem mencionada.
O normal é assim suceder proveito comum do casal. Para que tal não ocorra, deverão efetivar-se duas conjunturas cumulativas designadamente verificar-se uma separação de facto (cada um reside em moradas diferentes) bem como não manifestar-se uma benesse económica elevada (oferta de um automóvel por exemplo) ou reitereada (pagamento de prestações ou rendas da habitação onde reside o outro elemento).
Isto é, ambos devem desenvolver vidas separadas e, tirando casos excepcionais de pequenas lembranças como a oferta de um perfume num aniversário ou no Natal, tudo o resto significará que um recebe regalias provindas dos compromissos do outro.
Na prática, não acontecerá proveito comum do casal quando os cônjuges já terminaram a relação sentimental que tinham e estão em vias de se divorciar. Num qualquer vínculo afetivo, o habitual será um dos esposados usufruir dos privilégios que o outro lhe possa proporcionar. Mas diga-se que a demonstração da existência deste proveito comum do casal pertence ao credor e não ao devedor.
Ou seja, além do credor possuir o ónus legal de atestar os primeiros pressupostos do art. 15º do CCOM nos termos acima explanados, continuará a precisar de conferir, se o ramo de direito a ministrar for o civil, que houve proveito comum do outro integrante do casal.
Quanto à alínea d) do art. 1691º, nº 1 e nos termos da salvaguarda reforçada do credor no decorrer das disposições do direito comercial, verifica-se em compatibilidade com o nº 3 do mesmo artigo nova presunção, agora do proveito comum do casal, devendo mais uma vez o devedor tentar contrariar esta.
Lembremo-nos todavia que, para se aplicar a alínea d), manifestam-se as três condições conjuntas do art. 15º do CCOM significando deste modo que o devedor comerciante não conseguiu ilidir a presunção preceituada neste preceito.
Ou seja, nas disposições relativas ao direito civil (art. 1691º, nº 1 alínea c)) o devedor é o mais beneficiado pela lei ficando os encargos de prova a cargo do credor. Já nas normas regulatórias do direito comercial o credor por regra (com excepção dos dois primeiros quesitos cumulativos do art. 15º do CCOM) é o beneficiário, devendo ser o devedor comerciante a tentar ilidir as duas presunções explicadas neste nosso artigo.
Ocorre no entanto um caso excepcional na alínea d) do art. 1691º , nº1 do CC que não é extensível à alínea c) nomeadamente a responsabilidade da dívida atingir automaticamente apenas os bens do devedor se o regime de casamento for o da Separação de Bens, sendo irrelevante que o outro componente do casal tenha sido favorecido.
Apesar da finalidade genérica principal do direito comercial ser a de salvaguardar as garantias do credor verificam-se várias excepções sendo esta uma delas. A razão da mesma deve-se a um equilíbrio social justo de quem contrai matrimónio com um comerciante.
Isto é, a não existir esta restrição a pessoa que tivesse uma relação sentimental com um comerciante ficaria de imediato e por arrasto após o casamento, adstrita ao risco contínuo que a atividade comercial comporta violando-se a liberdade de família que cada cidadão deve livremente gozar e portanto, um dos direitos fundamentais pessoais principais.
Diga-se todavia que este cônjuge que realiza o casamento comerciante poderá optar em correr este risco permanente se decidir casar-se num regime de comunhão (geral ou de adquiridos) mas neste hipótese foi-lhe proporcionada a faculdade de escolher.
Assim, ou não lhe são aplicadas reflexamente as regras do direito comercial e designadamente a concernente ameaça consecutiva de responder com o seu património mas, ao mesmo tempo, não terá direito aos bens que serão próprios do esposado comerciante, em caso de divórcio.
Ou, por outro lado, poderá casar-se em comunhão numa perspectiva ininterrupta futura de risco. Diga-se que haverá sempre um custo de oportunidade em qualquer um dos tradeoffs exercidos mas o ponto essencial é poder decorrer esta liberdade de opção.
Por fim, se responderem os bens de ambos os cônjuges e de acordo com o art. 1695º do CC, nos regimes de comunhão (nº 1) o credor deverá primeiramente atingir o património comum (pertencente de igual modo as dois) e só subsidiariamente terá possibilidade de alcançar os bens próprios de cada um deles e nesta segunda situação, já de forma solidária (poderá escolher aquele que entender até ao término da dívida).
Já no regime de separação de bens, o credor deverá inicialmente satisfazer-se com o património próprio do devedor e só posteriormente (subsidiariamente) poderá reter os bens do outro cônjuge (nº2), não existindo património comum.
Em caso de responsabilidade apenas do devedor, então, em conformidade com o art. 1691º, nº 1 do CC, só os bens pertencentes ao património próprio do devedor responderão e caso exista um regime de comunhão, a sua menção (fração que lhe pertença) do património comum ficando todos os bens do outro membro do casal salvaguardados.
Diga-se por fim que o proveito comum é do casal e não da família, ou seja, os bens dos filhos nunca serão alvo de qualquer possibilidade de penhora encontrando-se salvaguardados das dívidas protagonizadas pelos seus pais.
Miguel Furtado
Coordenador das formações jurídicas pós-graduadas do ISG
10 Maio, 2019
Li o que Bruno Bobone disse há dias: o português tem medo de tudo. Li a entrevista[1] na sua totalidade e louvo a audácia de ele dizer, com o desassombro de quem nasceu em África, sem remoques, que “em África, não se pode ter medo. Quem tiver medo morre”.
Já há alguns bons anos que tenho essa perceção e que trabalho para superar o medo. Generalizando, nós, portugueses, somos, de facto, uns medrosos. E isso revela-se no nosso dia-a-dia. E até nas estatísticas – veja-se o estudo 2019 Global Emotions Report[2], da Gallup, que analisa 143 países e que consegue colocar Portugal no 5.º lugar dos mais “preocupados” (ou seja, que responderam que no dia anterior experimentaram sensações de elevada preocupação) do Mundo, a seguir a Moçambique, Chade, Benim e Irão e acima do Camboja, Níger, Togo e Brasil.
E esta preocupação e medo transmite-se de pais e de professores para filhos e alunos. E ainda bem que vieram, em quantidade e qualidade, muitos retornados aquando do regresso das antigas colónias. O que seria deste cantinho sem essa dinâmica (veja-se a quantidade de líderes empresariais e políticos nascidos em África!).
Tive a sorte de a referida entrevista ter sido publicada num dia em que eu dava aulas de Gestão Financeira a alunos do ISG, e em que um dos temas era análise de investimentos. A certa altura, no debate, referi-lhes que tão fundamental como um empreendedor ser um criador (na instalação de um negócio ou na dinamização de projetos dentro de organizações, lucrativas ou de âmbito solidário ou associativo) era perceber qual o momento de sair, se a coisa não estivesse a correr bem. E alguns alunos referiram que sentem que, quando a alguém um negócio não corre bem, é altamente estigmatizado, contrariamente ao que ocorre em outros países, em que se entende que o efeito aprendizagem e correção de eventuais falhas serve para construir uma história de vida que, obviamente, terá vitórias e insucessos (e “coisas” neutras….).
Agora que escrevo, lembro-me dos últimos tempos que tenho vivido, em que muitos me aconselham a ficar calado. Que os ataques que por aí grassam não me são dirigidos, mas sim a outros. Que se eu falar muito me irão perseguir ainda mais. E dizem-me: “estás a ver? Falas e levaste com mais nove meses de suspensão de sócio do Sporting”. Já vou ter de cumprir quase dois anos entre duas suspensões de dez e nove meses, adicionadas a períodos temporários que não relevam para efeitos de contagem. E sabe-se lá que mais. Pois, mas sinto que o melhor que fiz, e que iniciei num texto que o Link to Leaders me permitiu publicar, foi esclarecer as pessoas que são alvo de permanente desinformação e intoxicação mediática sobre o que foi o meu trabalho e dos meus colegas. Julgo que cumpri esse desiderato e continuarei, sempre que necessário, a fazê-lo.
Pois. Também me lembro quando em 2011 e 2013 também me disseram para não me meter em eleições no Sporting. Que eu e os outros éramos loucos. Pois éramos. E fizemo-lo por paixão, com dedicação e com algum desapego a vidas, porventura, confortáveis. Como outros (poucos) o fizeram. Não há nada na minha vida profissional e pessoal que me faça envergonhar. E adorei os cinco anos de pertença aos órgãos sociais de um Clube que, reconheço, jamais será unido. Como não o são grande parte das organizações neste nosso país de medrosos, bufos e invejosos. E digo isto com conhecimento da nossa História. Ora bolas! Sempre foram 285 anos de Inquisição e 48 anos Ditadura. Como também explico aos meus alunos de História e Economia Social, citando David Landes, no seu livro “A riqueza e a pobreza das nações”[3] e outros autores, todos nós temos um ADN cultural que nos propele ou limita.
Cabe a todos, professores, alunos, políticos e restantes cidadãos, identificar aquilo que nos torna diferentes e converter as alegadas falhas de carácter em ferramentas de sucesso: para que o medo se torne prudência e alerta, conectados à alegria em criar e em converter, para melhor; para que a delação se transforme em capacidade de análise crítica e liberdade de opinião e de denúncia (real) de iniquidades; e para que a inveja se reduza a uma vontade de superar os outros (lealmente) e, principalmente, a nós mesmos.
Esta é, quanto a mim, a chave para um país empreendedor. Como será para um Clube como o Sporting que poderá e deverá procurar no seu seio gente que, face a esta falta de união, mantenha uma dinâmica que vem permitindo uma notoriedade de marca e a construção de um conjunto de outros intangíveis, apesar da falta do que muitos sentem, de títulos e maiores sucessos. E que o façam sem medos. Que o Adamastor já lá ficou atrás há muitos anos.
Artigo em Link to Leaders
[1] https://bit.ly/2WF6Op7
[2] https://bit.ly/2W5R7a5
[3] Landes, David S. (2001); “A Riqueza e a Pobreza das Nações – Por que são Algumas tão Ricas e Outras tão Pobres”; Gradiva.